O livro A Vergonha, de Annie Ernaux, começa com uma frase escrita em letras maiúsculas: MEU PAI TENTOU MATAR MINHA MÃE. Uma frase que choca, uma cena que ao se tentar imaginar entristece, e para uma filha que estava prestes a completar doze anos, presenciar tal cena marcou sua vida para sempre. Era 15 de junho de 1952, um domingo.
Aquela jovem cresceu, é 1995, e escrever sobre “aquele” dia, “aquele” período de vida, traz outras recordações como “aquele” vestido que usava “naquele” dia, pensar “naquele” verão, os sucessos musicais “daquele” ano,… “Aquele” é usado a todo instante como forma de se tocar num assunto desagradável. Isso fez me pensar em quantas vezes já ouvi “aquele” substituir o real nome de algo ou alguém indesejável. Já pensou nisso? 🙂
Em 1995, aquela jovem já é uma mulher, e resolve ir consultar os arquivos em Rouen, onde vivia, em busca das edições do jornal Paris-Normandie para “aquele” ano, rever o que aconteceu durante os dias inocentes que antecederam a tal data marcante de 15 de junho de 1952. A mulher que ela é em 1995 é incapaz de se ver na menina de 1952.
Ao terminar de ler esse curto livro de Annie Ernaux, a pessoa curiosa que existe em mim resolveu fazer o mesmo, ou quase isso. Os tempos são outros, e, no meu caso, não preciso me deslocar aos arquivos de um jornal em Pernambuco, alguns cliques no computador, e as informações aparecem. Assim cheguei ao dia que também eu fiz os meus doze anos, em Pernambuco. Também tive dificuldade de ver a menina que eu era, e ao chegar à capa do Diário de Pernambuco em 6 de Junho de 1980 fiquei chocada. Décadas se passaram e parece que as notícias, ou melhor dizendo, os temas das notícias são as mesmas das notícias atuais. Elas eram:
-Terceira Guerra quase começou por alarme falso.
-Explosão mate três e fere 17 no centro de Garanhuns.
-Ex-guerrilheiro Hubert Matos vem ao Recife dia 14.
-Marco Maciel processa jornal “Hora do Povo” por denúncia infundada.
Num bloco de curtas notícias: Ted confiante, Gracejo fatal, Vez dos chineses, Reunião da Opep.
Segui para as páginas seguintes do jornal daquele dia. Os temas pareciam cada vez mais iguais as pautas atuais. Questionamentos sobre o que é a democracia no Brasil, o povo faminto e descrente nos temas políticos, descontentamento contra o poder dos militares, controle de natalidade, categorias trabalhistas debatiam acordos e salários, preocupação com a preservação da natureza, possibilidade de guerra em alguns países, uso de drogas por atletas. No Diário de Pernambuco havia um suplemento chamado Viver. Lembrei que eu gostava desse cantinho do jornal porque trazia a programação dos 4 canais de televisão existentes, trazia também tirinhas de histórias em quadrinhos de Asterix, Mandrake, Casal XX, Pato Donald, James Bond, Fantasma, Matt Dillon, Blondie, Pafúncio e Pelé, jogo de palavras cruzadas e dos oito erros. Então, naquele 6 de Junho, trazia um editorial sobre as universidades do Líbano cinco anos após a guerra civil, uma reportagem sobre a profissão de aeromoça, a importância do leite materno, a moda do macacão, a pílula do homem, o casamento de Caroline Kennedy, notícias sobre a alta sociedade recifense e alguns artistas, um pequeno anúncio para vacinar o filho contra a paralisia infantil ao lado de outros anúncios comerciais, Bergman em Veneza. Em seguida, várias páginas com anúncios, os classificados.
Ernaux recordou também uma música que lhe causava angústia ao ouvir e outra que lhe agradava. Eu busquei as músicas do ano 1980, e ao ver uma lista com cem músicas daquele ano, uma saltou-me aos olhos, lembrei que gostava do sentimento de calma que ela me trazia nos meus 12 anos. A menina que eu era não entendia o que a música dizia, e muito menos os sentimentos que a envolviam. Hoje sei. Hoje a recordei, Air Supply, Lost in Love.
A leitura de A Vergonha, de Annie Ernaux, fez-me viajar no tempo. Foi agradável.
Agradeço sua leitura e até ao próximo post!